Fusca automático: você já ouviu falar nele?


Pouca gente já ouviu falar mas, no início da década de 1970, a Volkswagen produziu uma série de Fuscas com câmbio automático. Os carros eram voltados para o mercado norte-americano onde as vendas do Beetle se encontravam no auge.

Na realidade, os Fuscas automáticos não tinham uma caixa de câmbio como as de outros carros do tipo. Os engenheiros da Volkswagen usaram de muita criatividade para atingir um desempenho semelhante ao dos carros equipados com transmissões automáticas tradicionais.

Produzidos na Alemanha, os Fuscas com dois pedais nunca chegaram a ameaçar as vendas do modelo tradicional. No Brasil, onde na época as importações eram restritas, entraram pouquíssimos exemplares.

O jornalista e colecionador Gabriel Marazzi conseguiu a façanha de reunir um 1970 branco e um 1971 azul-marinho, os dois em perfeitas condições.

O chamado Beetle automático, na verdade um semi-automático, surgiu em 1968, numa tentativa de impulsionar as vendas do Fusca no mercado norte-americano, que na época estavam no auge. Foi uma boa idéia, muito bem executada tecnicamente mas, do ponto de vista comercial, não ocasionou a reação esperada: em poucos anos a VW foi atropelada nos EUA pela nascente invasão japonesa, com modelos mais modernos e atraentes.

O engenhoso sistema criado pela fábrica alemã driblava uma séria dificuldade, na época. Os câmbios automáticos convencionais, naqueles tempos pré-informática, só funcionavam bem em dupla com motores grandes, com muito torque em baixas rotações. Bem diferentes dos que a VW fazia na década de 1960.

Batizada de Stick Shift, a nova transmissão eliminava o pedal da embreagem e, apesar de ter três marchas para a frente, possibilitava ao motorista, na prática, usar apenas uma ao rodar na cidade. Tudo o que os americanos que, já desde o final da década de 1950, haviam desaprendido a usar o câmbio, precisavam para gostar ainda mais do Volkswagen.


Andar num Fusca automático é bem interessante. Fizemos um pequeno passeio com os dois carros, num roteiro que incluiu algumas ladeiras bem fortes. Na saída, depois de uma pequena aula dada pelo proprietário, enfrentamos uma subida cheia de curvas, culminando numa parada num sinal fechado, daqueles que fazem maus motoristas apagarem o motor ao sair.

A recomendação foi usar a marcha “1” que, na realidade, é a segunda do câmbio de três velocidades. “Você não vai precisar usar outra marcha na cidade”, garantiu Gabriel. Ladeira acima, levando uma dupla de repórter e fotógrafo pesos-pesados, o Fusca branquinho 1970, o mais velho da dupla, pareceu nem estar se esforçando para rodar. E a parada no semáforo, seguida por uma forte curva à direita, foi vencida com uma facilidade até ali inesperada.


Antes de chegar ao local escolhido para as fotos, foi preciso “escalar” mais uma rua bem inclinada, a Avenida São Gualter. Mais uma vez, o carro tirou de letra. Se com o mais velho foi assim, com o 1971 não poderia ser diferente. Na verdade, foi até melhor: ele é um 1302 S, da primeira série de Volkswagens equipados com suspensão dianteira tipo MacPherson, um avanço que os Fuscas brasileiros nunca chegaram a receber. Além de um porta-malas maior, a direção é mais leve, é possível fazer curvas muito mais fechadas e a estabilidade teve um ganho acentuado.

Do ponto de vista do câmbio, há uma pequena diferença: no 1971 é preciso pressionar a alavanca para baixo antes de engatar qualquer marcha. Fora isso, o comportamento foi idêntico ao do 1970: o carro se mostra elástico e surpreendentemente ágil.

Tanto o 1970 como o 1971 passaram por muitas mãos antes de chegarem à garagem do atual proprietário. Na opinião dele, é provável que os dois exemplares, feitos na Alemanha, tenham vido para o Brasil para uso de funcionários de consulados ou embaixadas. A importação normal, na época, elevaria o custo do carro a valores proibitivos, pelos quais seria possível comprar carros mais vistosos do que um VW que, fora o logotipo na tampa traseira, dificilmente seria distinguido dos feitos em São Bernardo do Campo.

Na realidade, independentemente do câmbio, o 1970 feito na Alemanha já tem alguns detalhes diferentes dos brasileiros. O pára-brisa, por exemplo, é ligeiramente curvo, o comando de abertura do porta-malas fica dentro do porta-luvas e o da portinhola do abastecimento de combustível do lado direito, sob o painel.


Originalmente, o carro hoje nas mãos de Marazzi tinha motor com 1.300 cm3, que foi trocado pelo proprietário anterior por um de 1.600 cm3. No ano de sua fabricação, a VW alemã oferecia motores de 1,3 ou 1,5, enquanto o 1.200 cm3 ainda estada presente nas versões mais baratas.

O modelo 1971 é um 1302 S quase totalmente original. As lanternas traseiras e piscas dianteiras mostram tratar-se de uma unidade feita para o mercado americano. O motor tem 1.584 cm3, com 50 cv a 4.000 rpm. O 1302 básico usava motor 1.3, com 44 cv. Segundo a fábrica, o 1302 S automático podia atingir 125 km/h, pouco menos do que os 130 km/h de velocidade máxima do modelo manual. Para chegar a 100 km/h, ele levava longos 23 segundos.

O 1302, lançado exatamente em 1971, marca um momento importante na história do Beetle. Além da inovação da suspensão McPherson e alterações no interior, ele foi o modelo que estabeleceu a marca de 15,007,034 Fuscas fabricados, quebrando o recorde do Ford modelo T, de carro mais vendido na história.


Uma curiosidade: embora não fosse oferecido como equipamento de fábrica, era possível pedir a instalação de ar-condicionado opcional nas concessionárias americanas.

Apesar de não poder ser chamada de automática, na verdade, a transmissão Stick Shift permite que o motorista, na prática, raramente tenha que trocar de marcha. Para sair com o carro, basta escolher entre a ré e uma das três velocidades disponíveis, posicionar a alavanca e acelerar. O carro sai da inércia sem trancos, suavemente e, da mesma forma, ganha gradualmente velocidade respondendo ao acelerador.

O posicionamento das marchas é semelhante ao das transmissões chamadas de universais, com três velocidades. A ré fica à esquerda, na frente; a marcha mais reduzida, na mesma linha, para trás. Ao centro, o neutro e, à direita, segunda, na frente e a terceira, para trás.
No sistema Stick Shift, a marcha mais curta leva a letra “L”, de “load” (carga, em inglês). Ela só deve ser usada em casos especiais como, por exemplo, se o carro estiver com carga total ou rebocando um trailer. Para o uso normal, na cidade, a marcha “1” (na realidade, a segunda) é a indicada, podendo levar o carro até 90 km/h. A “2” (que é a terceira), mais longa, só é necessária acima disso, embora possa ser usada a velocidades menores, com prejuízo da aceleração.

A ré só pode ser engatada com o veículo parado e, como nos Fuscas normais, exige que a alavanca seja pressionada para baixo. Aliás, no modelo 1971, esse procedimento é preciso para selecionar qualquer uma das marchas – talvez um recurso para evitar que motoristas distraídos, ao colocarem a mão no câmbio, acionassem sem querer a embreagem.

A transmissão Stick Shift utiliza um câmbio mecânico, basicamente o mesmo dos Fuscas normais da época, só que com uma marcha a menos. O conjunto tem uma embreagem, que é acionada eletricamente sempre que a alavanca for movimentada – engatada a marcha, ela se fecha. Mas o deslocamento suave nas arrancadas é garantido por um outro dispositivo, o conversor de torque.

Em câmbios automáticos convencionais, a embreagem não existe e seu trabalho é executado apenas pelo conversor. Esse mecanismo permite que, quando o carro começa a se movimentar, exista um “deslizamento” entre o motor e o câmbio – como se o motorista estivesse liberando a embreagem lentamente, para evitar solavancos.

O segredo desse sistema automático desenvolvido pela VW é usar o essa característica do conversor. É como se, o tempo todo, o motorista estivesse “queimando” a embreagem para compensar o uso de uma marcha mais longa em baixa velocidade, ou em subidas. Na prática, com o Stick Shift é possível arrancar até mesmo usando a marcha mais longa.

Esta matéria foi publicada originalmente na Revista Fusca & Cia., da Editora Online

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